sobre o dia ou noite em que minha letra virou minha – uma breve história sobre caligrafia, mas não só

pietra inácio
3 min readNov 18, 2020

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na escola nem sempre tive a caligrafia das meninas que tinham aquela caligrafia de menina. “de menina”. nem sempre me apeguei às formas. muitas e muitas vezes segurava o lápis com força e por isso lápis e não lapiseira, que era pra ponta quebrar menos e durar mais, suportando as linhas fortes que iam fugindo, fugindo, fugindo… nunca ilegíveis, mas certamente feias e meio grandes demais.

a letra diminuiu quando comecei a ficar desolada com o minúsculo espaço de texto que me restava, me fazendo sentir como se eu tivesse que me espremer num buraco bem apertado pra escrever o tanto que eu quisesse, meio como se as palavras criassem vida própria e me colocassem contra a parede.

eu queria escrever mais pra ter mais espaço e ir mais longe. mas não foi só sobre transformar a letrona em letrinha. também chegou o momento em que o OUTRO virou o padrão inatingível que eu queria atingir. pressão conhecida até demais pelas mulheres. acho que sempre senti que fui um pouco eu demais. silenciava viajando no meu próprio mundo pra não fazer tanto barulho e todo meu som era recebido com muita vergonha por mim mesma. pois é… nem peidar eu peidava com tranquilidade. arrotar então… jamais.

e aí eu quis porque quis uma letra pequena que combinasse com como eu me sentia. virou objetivo, desafio e quase competição.

mesmo adaptando muito nunca tive aquela letra com manias de curvas excessivas e também nunca fiz pingos do “i” no formato de coração, porque nunca gostei dos exageros, mas eu soube que a letra virou o que eu tanto queria quando numa mostra de trabalhos meus pais disseram que aquelas letras bonitas no mural eram mesmo todas muito parecidas entre si, quase impossível notar a diferença. recebi como uma vitória e meio como um troféu constatar que a minha era uma delas.

só muito tempo depois fui me dar conta do tamanho desproporcional do alívio que me invadiu. foi um alívio-sopro que me soprou pela vida tentando se retroalimentar, me fazendo sempre querer passar despercebida da maioria, sacrificando por isso a vontade latente-contínua de comunicar quando eu queria, como eu queria. ia sufocando o próprio traço, a própria letra, a própria vontade. tinha virado missão impossível viver sem que tudo o que me já me habitava me habitasse– porque de fato continuou habitando, como a parte da pietra que, meio como eurídice, a pietra não queria que existisse, mas existia. tudo que saía da linha planejada transcendia à timidez virando vergonha.

vergonha da letra, do diálogo, do sangue quando correu pela primeira vez do meio das minhas pernas e me fez paralisar de medo, já que eu sentia que até o tempo do meu corpo era ou cedo demais ou tarde demais, sempre mais ou menos errado (quase sempre mais). tanta vergonha que até dos primeiros amores platônicos abri mão, repleta das inseguranças, sempre à sombra me enxergando não pertencente e fazendo disso motivo pra fingir não sentir. dissociada. imprópria.

mas aí… aquele sopro ainda me empurrava. a letra redondinha disfarçava a sensação de vergonha constante. comecei a usar as roupas parecidas, o mesmo corte de cabelo, adequar os gostos e até os trejeitos das mãos. achei que precisava fazer tudo minuciosamente igual.

acho que por isso, até pouco tempo atrás, tive dúvida sobre o quanto de cada letra é minha de fato. não sei exatamente, mas se de tanto em tanto tempo renovamos até as células do nosso corpo, tento fazer de cada renovação um passo mais e mais espontâneo, querendo mais a espontaneidade do que a caligrafia impecável e colocando alguma originalidade no lugar da vontade de ser imperceptível.

e foi em algum dia ou noite que não sei dizer qual que decidi segurar o lápis ou a coneta como fosse confortável. sem pensar muito. e aí o traço até tremeu feliz por correr solto, deixando que vez ou outra o “a” e o “o” se confundissem mesmo – tadinhos, nunca fizeram mal a ninguém -, e que o risco do “t” ficasse esquecido de vez em quando se ele quisesse, como se pulasse pra fora da página e fosse sozinho viver alguma aventura radical. intensamente vivo e entregue como quem agora o escreve.

e essa é a história do dia ou noite em que eu percebi que prefiro que falte o pingo do “i” ou a perninha do “g” pra que não falte a mulher por trás do texto – eu – respirando a plenos pulmões. o dia ou noite em que minha letra virou minha.

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pietra inácio

chegou um tempo em que a vida é uma ordem - sem mistificação.